terça-feira, 9 de agosto de 2011

Inquérito policial: fonte de cidadania


  1. 1.    INTRODUÇÃO
           Analisar o instituto do Inquérito Policial desprovida de conotação estritamente jurídico-legal, mas antes, cingida por nuances de ordem mais sociológica, desnuda de uma linguagem excessivamente técnica e codificada, significa facilitar o entendimento do próprio Direito como um dos sustentáculos de uma sociedade, ou mesmo de um modo de produção, como é o caso do capitalismo.
           É comum ao se embrenhar pelas sendas escuras de assuntos que não temos afinidade, perder-se o tempo todo, consignar associações espúrias e lançar juízos viciados, fruto de ideias preconcebidas e formadas a partir de raros pálios de luz que por vezes socorrem quem não domina um estudo em todos os seus meandros.
           O termo Inquérito Policial muitas vezes é pronunciado e até mesmo discutido sem a devida atenção a sua lídima teleologia, isto é, como um instrumento de justiça, apegando-se muitos, apenas a uma vertente de entendimento, de que aludido instituto se afiguraria em mais um instrumento de opressão, coerção, e de controle de que dispõe a classe dominante na ordem capitalista.
           Ademais, nossa tradição democrática relativamente recente, salpicada por longos hiatos de ditadura, conferiu muitos rótulos ao Inquérito Policial, já que lhe traz ínsito, por óbvio, a ideia presente de Polícia, que no Brasil, em virtude do referido autoritarismo, apresenta um modelo anacrônico e incompatível com o Estado Democrático de Direito.
           No Brasil são duas Polícias em âmbito estadual, uma de cunho democrático e outra com forte ressaibo ditatorial, e essa dualidade gera distorções que desembocam nas estratégias de políticas de segurança pública, tornando-as pífias e contraditórias.
            Há um vício de método quando se fortalece a estrutura militarizada em detrimento da força civil, que é a Polícia mais compatível com a proposta democrática. Por outro lado, a utilização de uma Polícia com força militar é conveniente à estrutura de governo.
            O Inquérito Policial é mecanismo de investigação da Polícia Civil, que no cenário que se apresenta, é a instituição policial que mais padece com limitações em seu campo de atuação adredemente impostas por governos tendenciosos, já que a legitimidade de que goza na conjuntura democrática, devidamente contemplada com estrutura e fortalecimento adequados tem o condão de promover justiça também contra os criminosos não rotulados.
            O que se pretende demonstrar, é que fortalecer a Polícia Civil e seu mais poderoso instrumento de atuação que é o Inquérito Policial, significa fomentar a cidadania num contexto que alberga direitos fundamentais como a liberdade do indivíduo, assegura valores irrenunciáveis como a justiça, além de funcionar como um meio de defesa contra uma ordem que assegura uma igualdade formal, mas de acordo com seu modelo econômico, não consegue estender a igualdade material, mas ainda assim, é um dos seus objetivos, conforme dispões a própria Constituição Federal.

  1. 2.    OS ALVOS DE SEMPRE
            A democracia ao lado das políticas sociais são um dos mecanismos mais poderosos na mitigação dos efeitos nefastos do capitalismo. Um porque, necessariamente, tem por corolário a cidadania, que se plena confere direitos civis políticos e sociais bem delineados e permite a participação no processo político, e o outro porque ameniza os consectários da volúpia do capital, tentando impedir que os indivíduos caiam na pobreza extrema, garanta-lhe renda, oportunidades etc.
           Não é objeto aqui aprofundar o caráter contraditório das políticas sociais e sua dupla face, uma voltada para o capital e outra para o trabalho, mas a partir dela mostrar que um dos lados está mais descoberto do que o outro. (PEREIRA, 2002).
            No Brasil as políticas públicas, entre elas as sociais, são muito tímidas e não conseguem atingir a grande massa de pobres e miseráveis, fruto de uma sociedade que ao longo da história desprestigiou os direitos fundamentais da maioria dos seus cidadãos.
            Impende-se daí declinar argumentos decisivos para as indisfarçáveis mazelas sociais brasileiras, incluindo o não pleno exercício da cidadania civil, que advieram dos tempos coloniais, e se arrastam até os dias hodiernos: a escravidão, com todos os seus reflexos, a grande propriedade rural e a mistura da coisa pública com o privado, inserto aí a corrupção e a impunidade que a fomenta.
             De um lado, a escravidão, pois se constituía em negar a condição humana dos negros, e de outra ponta, a propriedade rural, que parecia mais feudos, e estava blindada à ação legal, e o privado passeando livremente na seara pública, agindo como seu legítimo dono. (CARVALHO, 2007).
             Aportando em 08 de março de 1808 no Brasil, uma das primeiras providências da corte real portuguesa foi instituir a Polícia, o que se deu no Rio de Janeiro em 10 de maio de 1808, com a criação da Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil.
             A população brasileira, notadamente constituída por negros e mestiços, que vivia em condições subumanas, representavam uma ameaça ao poder da metrópole que acabara de ser transferir para o Brasil em virtude da fuga da família real das tropas de Napoleão Bonaparte que havia imposto o bloqueio continental.
            Um ano após a vinda da nobreza portuguesa para o Brasil foi criada a Guarda Real de Polícia, com função precípua de preservação da ordem e mirando como alvo os negros e escravos libertos, trazendo no bojo de suas ações de controle a truculência e a violência, ausente o mínimo sentimento de respeito à dignidade da pessoa humana, já que, o escravo era considerado coisa, uma propriedade do seu senhor, mas que, por isso mesmo deveria ter a vida preservada.
            É força considerar que ao longo da nossa história os alvos da Polícia são os mais desassistidos, os marginalizados, que em sua maioria constituem-se de negros e pardos, havendo também grande parcela branca, mas que carregam a mesma pecha da pobreza e desassistência. Assim, o fator cor não deve estar dissociado do fator econômico.
           De outro lado, nossa legislação é elitista, as leis são feitas para os pobres e não para os ricos, o Direito Penal que possui função primordial de proteção de bens jurídicos, muitas vezes é utilizado com missão meramente simbólica, para atender às demandas da classe mais privilegiada, e contribuir para esconder as verdadeiras causas da criminalidade.
           A título de exemplo, basta citar a lei dos crimes hediondos, é notadamente uma lei de jaez elitista, trazendo um rol de crimes cometidos por pobres contra os ricos, mas não albergando da mesma sorte crimes de ricos contra os pobres, por exemplo, a corrupção, as fraudes, desvios de dinheiro público etc.
          O que dizer, do mesmo modo, de um ordenamento jurídico que até pouco tempo previa como infração penal a mendicância e ainda hoje pune a vadiagem como contravenção, semelhante às primeiras leis dos pobres (poor law) da Inglaterra que tratavam a "vagabundagem" como crime. (PEREIRA, 2009).
          Deste modo, a Polícia tem a maioria de suas ações voltadas contra os marginalizados, não por índole, mas por força de sua própria ontologia, é seu dever, tendo por supedâneo a lei, prevenir e combater a criminalidade.
          Ocorre, no entanto, que o arcabouço jurídico-legal extraído do sistema político-econômico, que impõe o dever de atuação da Polícia, é engendrado de forma a ser mais rigoroso em relação aos pobres, criaturas de um modelo que fomenta a exploração de uma classe sobre a outra, e mais leniente com os mais abastados, os quais, além de não ter contra si uma legislação que os alcance de forma específica, como ocorre com os crimes típicos de pobres contra ricos, por exemplo, roubo e sequestro, ainda tem em seu favor a possibilidade caminhar pelos atalhos da lei e encontrar falhas que os favoreçam, bem como usufruir de teses mirabolantes criadas por expertos em Direito e que, muitas vezes, seduzem o Poder Judiciário, o qual muda de humor dependendo do quilate do demandante.
         Assim, não é a Polícia propriamente quem cria as distinções, embora em muitos casos, não há como negar, contamina-se por uma espécie de ódio a uma classe de pessoas, destacadamente os pobres e desassistidos que possuem contra si a presunção de serem criminosos apenas por ostentarem na própria face e indumentária o retrato das desigualdades sociais.
        No entanto, uma vez enveredados para a criminalidade, tem a Polícia o dever de agir, não tendo discricionariedade de analisar as questões sociais que empurram tal ou tais pessoas para a delinquência, mas o fato é que, a Polícia tem de ter condições de cumprir a lei de igual forma contra os mais aquinhoados, pois sua função é de combate ao crime, e não ao criminoso. Isso seria democrático, mas a lei se "esquece" disso.

  1. 3.  A IMPORTÂNCIA DO INQUÉRITO POLICIAL   

            Necessário, neste momento, tecer algumas considerações do que seja o Inquérito Policial e qual a sua função, pois embora a ideia, conforme lançado na introdução do trabalho não seja abordar o instituto pela via meramente jurídica, ainda assim, em dado momento terá que ser invocado o "juridiquês", mesmo  que superficialmente.
           
            Grosso modo, existem no Brasil duas polícias, uma militarizada com funções preventivas, e outra democrática, que é a Polícia Civil, também com atribuições de prevenir o crime, mas essencialmente reprimi-lo, e repressão aqui significa investigação.
           
            A Polícia civil é dirigida pelos delegados de polícia, os quais, a exemplo de promotores e juízes, possuem a mesma formação jurídica e sistema de ingresso na  respectiva carreira idêntico, constante na Constituição Federal, ou seja, concurso de provas e títulos e acompanhamento das fases pela Ordem dos Advogados do Brasil, embora não tenham sido estendidas as mesmas garantias e prerrogativas dos juizes e promotores aos delegados de polícia, situação que dá azo para uma série de ingerências, mas que não será discutido aqui.

            A legitimidade para atuação da Polícia e do Poder Judiciário está prevista na Constituição Federal e no Código de Processo Penal, o qual prevê como autoridades apenas o juiz e o delegado de polícia, e isso nada tem a ver com as vãs discussões shakespearianas acerca de ser o não ser o delegado de polícia a única autoridade policial do nosso ordenamento jurídico, mas apenas para demonstrar que a atuação e a carreira de delegado ostenta natureza jurídica.
           
            Cometido um crime, haverá duas fases de análises, chamada em Direito de "persecução", isto é, uma esfera preliminar, que é a fase investigativa propriamente dita, à qual se materializa por meio do Inquérito Policial, e é dirigida pelo delegado de polícia, e a outra judicial, presidida por um juiz.

            Na fase de Inquérito Policial não há uma acusação formal, mas indícios de que a pessoa investigada cometeu um crime. Concluído o Inquérito Policial será tudo encaminhando para o juiz, e este abrirá vista para o promotor de justiça, cuja função nesse momento é de analisar se as investigações trazem a evidência do crime materializada e se há indícios de autoria de crime contra uma pessoa.

            Subsistindo esse suporte mínimo o promotor de justiça invocará o judiciário por meio de uma peça jurídica denominada "denúncia" (ação penal), à qual, se aceita pelo juiz, deflagra a segunda fase da persecução criminal, que é a chamada instrução criminal, e ao final, culmina em julgamento, basicamente absolvendo ou condenando a pessoa que, terminologicamente, não é mais o investigado ou o indiciado, mas o réu ou o acusado.

            Todo o arcabouço jurídico processual-penal tem como base o Inquérito Policial, e sua principal característica dentro do nosso Estado Democrático de Direito é de ordem garantista, ou seja, ele é pedra angular da segurança jurídica, e bem assim, atua decisivamente para a tão almejada justiça.

            Outro não foi o pensamento do legislador, o qual na exposição de motivos do Código de Processo Penal atestou:

                        "(...) há em favor do inquérito policial, como instrução provisória antecedendo à             propositura da ação penal, um argumento dificilmente  contestável: é ele uma garantia contra        apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causado pelo             crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstânciasobjetivas e subjetivas(...) mas o nosso sistema tradicional, como o inquérito preparatório, assegura uma justiça menos aleatória, mais prudente e serena"             (grifei).

            Essa garantia é também corolário do valor mais sensível e emblemático do Estado Democrático de Direito, qual seja, o da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III da Constituição Federal), que não pode de forma nenhuma ser arrostado.

            Diante disso, se há previsão legal para se recorrer a um órgão técnico-jurídico, que é a Polícia Judiciária Civil, a qual dispõe de um instrumento especializado, que é o Inquérito Policial, idôneo a amealhar elementos sólidos e coerentes para ancilar futura ação penal, não há justificativa razoável para se pular essa fase integrante do nosso sistema processual acusatório.
                       
            Simplesmente suprimir o inquérito policial afigura-se enfraquecer a cidadania no tocante à preservação do direito de liberdade, sobretudo das classes menos favorecidas e de onde emana a maioria dos crimes comuns como furtos, roubos, homicídios etc.

            O Inquérito Policial, se conduzido por uma Polícia Civil mais bem estruturada e preparada, assumindo seu importante papel como um dos protagonistas da democracia, é capaz de promover a cidadania, já que os policiais são os primeiros agentes públicos que são enviados a atuar no cenário criminoso, seja com o autor do ilícito ou com a própria vítimas e familiares.

            Sobretudo contra quem recaem os indícios de crime a importância do Inquérito Policial cinge-se ao fato de que o indivíduo, que muitas vezes já traz uma presunção estereotipada de criminoso, pode, durante as investigações, demonstrar que está sendo alvo de injustiça.

            É a possibilidade de ser ouvido antes do procedimento judicial, o qual, se fosse único, estaria à mercê de paixões, preconceitos e juízos apressados e influenciados pelo crepitar dos fatos e sua repercussão social.

            O Inquérito Policial tem função de arrefecer esses fatos e entregá-los ao Poder Judiciário e ao Ministério Público já verificados e analisados preliminarmente, como um filtro, proporcionando agora um julgamento mais refletido e com aplicação das garantias mais robustas, pertinentes e essa esfera.

            Destarte, lançando-se mão do Inquérito Policial como fator de cidadania, aqueles que não possuem possibilidade de contratar caros advogados inventores de teses fantásticas vendidas em cursinhos jurídicos para evitar eventuais injustiças têm no Inquérito Policial um mecanismo que lhe serve de anteparo.

             De outro lado, não é só instrumento do indivíduo isoladamente, mas também da coletividade, pois proporcionará segregar do convívio social pessoas que não estão munidas de civilidade para conviver com as relações intersubjetivas, mas com a certeza de que não se estará cometendo injustiças, nem suprimindo aparatos de defesa.aparatos de defesa, m, nem suprimindocaros advogados para evitar eventuais injustiças tem ao seu favor  esse mecanismo que lhe


  1. 4.    CONSIDERAÇÕES FINAIS
             O objetivo do presente trabalho cingiu-se a demonstrar a importância do inquérito policial não apenas em seus contornos jurídico-legais, mas situá-lo sob uma perspectiva de jaez social, ou seja, confrontar o instituto com o sistema capitalista, o qual, por sua natureza, dissemina contradições e desigualdades.
             Assim, partindo de uma premissa, que pode ser facilmente verificável empiricamente, ou seja, a pobreza advinda do modo de produção capitalista ostenta outros meandros que são corolários das distorções inerentes ao aludido sistema econômico, como a marginalização e os criminosos rotulados.
             Embora não tenha sido o escopo precípuo o aprofundamento dos aspectos da marginalização, tomou-se como postulado para demonstrar que o sistema pode incidir injustamente mais de uma vez sobre o mesmo foco, quer privando a maioria dos indivíduos da riqueza coletiva por ela ajudada a produzir, ou aplicando de forma injusta uma legislação criada, segundo muitos, com a finalidade de legitimar o próprio sistema.
             Desta forma, o Inquérito Policial é um poderoso instrumento de cidadania à medida que impede que as classes mais vulneráveis econômica e socialmente sejam levadas abruptamente para um julgamento açodado que pode resultar numa condenação injusta.
            Muitos se arvoram em depor contra o Inquérito Policial argumentando que se trata de um instrumento anacrônico e inexistente em países desenvolvidos, o que nos parece equivocado, pois nos locais geralmente citados em que se não lança mão do inquérito policial subsiste uma fase processual que equivale à investigação criminal brasileira.
            Ocorre que em outros países citados como modelo a ser seguido essa fase preparatória é conduzida por um juiz, e aqui por um delegado de polícia, o qual pertence a uma estrutura que experimentou certo desmonte com a Constituição Federal de 1988, que suprimiu importantes prerrogativas e que perdeu oportunidade de estender garantias absolutamente indispensáveis à democracia, sendo que isso ocorreu por conta de um inexplicável revanchismo.
           Ora, a Polícia Civil é a Polícia democrática por excelência, e deveria ser estruturada para fortalecer a própria cidadania, revigorando o Inquérito Policial como instrumento inarredável na promoção de justiça, verdadeiro anteparo em favor dos desassistidos, que passam por um filtro democrático, já que os criminosos oriundos das camadas mais pobres costumam ser condenados antes mesmo de irem a julgamento.
           Destarte, muitas vezes, por um complexo tolo ou uma inócua disputa de funções, vislumbra-se que as soluções estão em importar modelos de outras realidades sociais, econômicas, políticas e jurídicas, quando o correto seria aperfeiçoar os mecanismos genuínos, como é o caso do Inquérito Policial.

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