segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Poema(s) da Cabra - João Cabral de Melo Neto



    
    Nas margens do Mediterrâneo
    não se vê um palmo de terra
    que a terra tivesse esquecido
    de fazer converter em pedra.

    Nas margens do Mediterrâneo
    Não se vê um palmo de pedra
    que a pedra tivesse esquecido
    de ocupar com sua fera.

    Ali, onde nenhuma linha
    pode lembrar, porque mais doce,
    o que até chega a parecer
    suave serra de uma foice,

    não se vê um palmo de terra
    por mais pedra ou fera que seja,
    que a cabra não tenha ocupado
    com sua planta fibrosa e negra.

                         1

    A cabra é negra. Mas seu negro
    não é o negro do ébano douto
    (que é quase azul) ou o negro rico
    do jacarandá (mais bem roxo).

    O negro da cabra é o negro
    do preto, do pobre, do pouco.
    Negro da poeira, que é cinzento.
    Negro da ferrugem, que é fosco.

    Negro do feio, às vezes branco.
    Ou o negro do pardo, que é pardo.
    disso que não chega a ter cor
    ou perdeu toda cor no gasto.

    É o negro da segunda classe.
    Do inferior (que é sempre opaco).
    Disso que não pode ter cor
    porque em negro sai mais barato.

                         2

    Se o negro quer dizer noturno
    o negro da cabra é solar.
    Não é o da cabra o negro noite.
    É o negro de sol. Luminar.

    Será o negro do queimado
    mais que o negro da escuridão.
    Negra é do sol que acumulou.
    É o negro mais bem do carvão.

    Não é o negro do macabro.
    Negro funeral. Nem do luto.
    Tampouco é o negro do mistério,
    de braços cruzados, eunuco.

    É mesmo o negro do carvão.
    O negro da hulha. Do coque.
    Negro que pode haver na pólvora:
    negro de vida, não de morte.

                             3

    O negro da cabra é o negro
    da natureza dela cabra.
    Mesmo dessa que não é negra,
    como a do Moxotó, que é clara.

    O negro é o duro que há no fundo
    da cabra. De seu natural.
    Tal no fundo da terra há pedra,
    no fundo da pedra, metal.

    O negro é o duro que há no fundo
    da natureza sem orvalho
    que é a da cabra, esse animal
    sem folhas, só raiz e talo,

    que é a da cabra, esse animal
    de alma-caroço, de alma córnea,
    sem moelas, úmidos, lábios,
    pão sem miolo, apenas côdea.

                         4

    Quem já encontrou uma cabra
    que tivesse ritmos domésticos?
    O grosso derrame do porco,
    da vaca, do sono e de tédio?

    Quem encontrou cabra que fosse
    animal de sociedade?
    Tal o cão, o gato, o cavalo,
    diletos do homem e da arte?

    A cabra guarda todo o arisco,
    rebelde, do animal selvagem,
    viva demais que é para ser
    animal dos de luxo ou pajem.

    Viva demais para não ser,
    quando colaboracionista,
    o reduzido irredutível,
    o inconformado conformista.

                         5

    A cabra é o melhor instrumento
    de verrumar a terra magra.
    Por dentro da serra e da seca
    não chega onde chega a cabra.

    Se a serra é terra, a cabra é pedra.
    Se a serra é pedra, é pedernal.
    Sua boca é sempre mais dura
    que a serra, não importa qual.

    A cabra tem o dente frio,
    a insolência do que mastiga.
    Por isso o homem vive da cabra
    mas sempre a vê como inimiga.

    Por isso quem vive da cabra
    e não é capaz do seu braço
    desconfia sempre da cabra:
    diz que tem parte com o Diabo.

                         6

    Não é pelo vício da pedra,
    por preferir a pedra à folha.
    É que a cabra é expulsa do verde,
    trancada do lado de fora.

    A cabra é trancada por dentro.
    Condenada à caatinga seca.
    Liberta, no vasto sem nada,
    proibida, na verdura estreita.

    Leva no pescoço uma canga
    que a impede de furar as cercas.
    Leva os muros do próprio cárcere:
    prisioneira e carcereira.

    Liberdade de fome e sede
    da ambulante prisioneira.
    Não é que ela busque o difícil:
    é que a sabem capaz de pedra.

                        7

    A vida da cabra não deixa
    lazer para ser fina ou lírica
    (tal o urubu, que em doces linhas
    voa à procura da carniça).

    Vive a cabra contra a pendente,
    sem os êxtases das decidas.
    Viver para a cabra não é
    re-ruminar-se introspectiva.

    É, literalmente, cavar
    a vida sob a superfície,
    que a cabra, proibida de folhas,
    tem de desentranhar raízes.

    Eis porque é a cabra grosseira,
    de mãos ásperas, realista.
    Eis porque, mesmo ruminando,
    não é jamais contemplativa.

                         8

    O núcleo de cabra é visível
    por debaixo de muitas coisas.
    Com a natureza da cabra
    outras aprendem sua crosta.

    Um núcleo de cabra é visível
    em certos atributos roucos
    que têm as coisas obrigadas
    a fazer de seu corpo couro.

    A fazer de seu couro sola,
    a armar-se em couraças, escamas:
    como se dá com certas coisas
    e muitas condições humanas.

    Os jumentos são animais
    que muito aprenderam com a cabra.
    O nordestino, convivendo-a,
    fez-se de sua mesma casta.

                          9

    O núcleo de cabra é visível
    debaixo do homem do Nordeste.
    Da cabra lhe vem o escarpado
    e o estofo nervudo que o enche.

    Se adivinha o núcleo de cabra
    no jeito de existir, Cardozo,
    que reponta sob seu gesto
    como esqueleto sob o corpo.

    E é outra ossatura mais forte
    que o esqueleto comum, de todos;
    debaixo do próprio esqueleto,
    no fundo centro de seus ossos.

    A cabra deu ao nordestino
    esse esqueleto mais de dentro:
    o aço do osso, que resiste
    quando o osso perde seu cimento.

                         *

    O Mediterrâneo é mar clássico,
    com águas de mármore azul.
    Em nada me lembra das águas
    sem marca do rio Pajeú.

    As ondas do Mediterrâneo
    estão no mármore traçadas.
    Nos rios do Sertão, se existe,
    a água corre despenteada.

    As margens do Mediterrâneo
    parecem deserto balcão.
    Deserto, mas de terras nobres
    não da piçarra do Sertão.

    Mas não minto o Mediterrâneo
    nem sua atmosfera maior
    descrevendo-lhe as cabras negras
    em termos da do Moxotó.

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