quarta-feira, 29 de junho de 2011

UM TROCADO PARA UMA LATA DE LEITE CARO



Um homem sentado diante da entrada da empresa onde você trabalha lhe pede um trocado: _Doutor, tem aí algum trocado pra completar pra eu comprar uma lata de leite em pó do caro? Você não está com dinheiro em cédula; possui cartões, mas dinheiro propriamente não. Então você nega: _Desculpe, mas estou sem nenhum dinheiro aqui. O pedinte obviamente duvida. Sua roupa branca é um símbolo do sucesso social; não é possível que um homem que vista branco sob um pomposo jaleco também branco não traga consigo nenhum mísero trocado pro pedinte malfadado. Contudo é a verdade, creia ou não creia quem pede. Mas e se tivesse um trocado e desse ao jovem aparentemente saudável pedinte, não seria o mesmo que patrocinar a condição depreciativa do jovem? Você continua em seu caminho empresa adentro enquanto o pedinte continua em sua tentativa de sensibilizar algum passante. E se fosse um pouco de atenção que aquele homem estivesse pedindo seria menos depreciativa a sua condição? Quantas pessoas não nos pedem por um pouco de atenção todos os dias? O pedinte pede mesmo a todos que passam. Há muito ele perdeu seu orgulho, sua dignidade. Pede com um sorriso sínico preso em sua cara. Talvez tenha vontade de rir de você e de sua pressa, e de sua indumentária alva, e de sua falta de tempo e de trocados. Talvez. Quem sabe? Você sobe às escadas intrigado com o fato. Aquele encontro lhe traz questões as quais você não esperava dedicar suas reflexões naquela hora do dia. Pergunta então a dois amigos se na mesma situação teriam arrancado de algum fundo de carteira um esquecido trocado, caso tivessem, é claro. Os amigos se entreolham. Um propõe uma inversão de papéis e lhe diz se caso fosse você na situação do pedinte, como faria ao precisar de algum dinheiro para completar a soma que paga a lata do leite caro que seu filho faminto chora com dor na barriga por dele ser privado. Você diz que tentaria algo, talvez limpar os vidros de algum carro, engraxar um sapato, varrer alguma calçada, catar latas. O outro amigo concorda e faz sua observação: _Fazer nada é complicado. E você concorda que fazer nada é mesmo complicado. Volta para a sua manhã e agora o próximo pensamento é o almoço. Mas o pedinte segue em sua campanha por trocados. Pede a todos que passam. Isso não chega a lhe vexar a alma. Acostumou-se a pedir. Modelou sua máscara sínica e debochada. Pede em nome do filho latente, agradece em nome de Deus. Isso pra ele não é nenhum sacrifício. Deixou de ser, logo após os primeiros sucessos. Seu orgulho se esvaiu feito fumaça.

Um comentário:

Jeferson Cardoso disse...

Nossa, Márcio!, que coisa linda você fez com os livros de Gil Vicente! Cara, isso foi fantástico! Obrigado por esta divulgação de meu texto que muito me honrou e alegrou. Um forte abraço, amigo! Obrigado também pelo carinho e atenção ao meu blog!